É o fantasma da culpa.
Nada pode estar tão bem assim, certo? Porque afinal, o que ela fizera para merecer isso?
Sempre teve tudo que precisou na vida. Nunca faltou comida, família, carinho, amigos, amores... Houveram sim, os momentos dificeis, de rejeição, de fracasso, mas nada tão grave se comparado a muitos problemas enfrentados por aí.
É claro que a proporção dos problemas é de acordo com a realidade de cada um. Mas ...
Alice sempre teve uma fraqueza emocional relacionada à culpa. Ela nunca se sentiu forte, batalhadora... Mas sempre foi. Lutou contra dogmas e idéias pré-concebidas. Tomou decisões difíceis, correu atrás de seu sonho, foi filha, irmã, amiga, namorada. Teve muitas alegrias mas enfrentou várias decepções e foi muito forte quando realmente precisou. E mesmo assim sua cabeça continuava afirmando que ela era fraca. Todo ano ela fazia promessas e mais promessas incumpríveis. Sábias vozinhas ao seu redor diziam "Você não vai mudar fazendo sempre a mesma coisa." Tá certo. Mas afinal, o que ela tinha que fazer? Ja havia passado por terapias diferentes, cursos diferentes, cidades diferentes, namorados diferentes.
Ou ela era um problema sem solução ou ela estava encarando as coisas da forma errada.
É claro que seus atos sempre teriam consequencias: se comer demais e não fizer exercício, vai engordar. Se não arrumar a casa, ela vai ficar bagunçada.... Mas o mais importante é que tudo que ela fizesse fosse feito por ela e não para satisfazer uma expectativa alheia que ela colocou.
Será que a principal mudança que precisava ser operada não era a a de aceitar quem ela realmente era? E nao de tentar satisfazer uma imagem que ela achava que os outros tinham dela???
Percebeu que ter pontos fracos não equivalia necessariamente a ser fraca. E que esse modelo de perfeição que ela buscava era inatingivel e por isso mesmo sempre frustrante.
Descobriu que a cabeça dela não lutava contra ela, como ela sempre achou, mas estava sim, tentando lembrá-la de que não daria conta de acompanhá-la nesse novo eu que ela estava tentando criar. Não era ela, mas um personagem.
Então Alice deixou de fazer resoluções e partiu para a ação.
Resolveu assumir seus defeitos. Dos quais tanto se envergonhava. Aqueles que atrapalhavam seu ideal de perfeição. Suas crises de preguiça, sua teimosia excessiva, sua autocrítica, seu veneno, sua mania de ser dona da verdade, sua barriga, sua celulite, sua flexibilidade terrivel... entre muitos.
Poderia melhorar neles. Estabeleceu uma rotina necessária à vida que escolheu, mas sem cobranças demais. Sempre fazendo o seu melhor possivel.
Mas mais do que nunca Alice resolveu assumir suas qualidades. Seu talento, sa voz, sua inteligencia, sua capacidade de fazer bem feito, sua lealdade, sua intensidade, sua alegria, sua beleza... entre muitas. Tudo de bom que morava nela.
Seus pontos fortes. E se divertir com eles.
Muitas coisas aconteceram para que Alice chegasse nesse ponto, coisas boas e ruins. É a vida. E ela descobriu que era isso que fazia ela ser quem era. Talvez seja aí que aconteceu a grande mudança. Porque Alice enfim percebeu que não era um personagem. Que tentando agradar todo mundo ela estava desagradando quem devia ser mais importante naquela história toda: Ela mesma.
E assim, sem mais promessas, pela primeira noite em decadas - apesar de sempre achar que isso acontecia - Alice dormiu tranquila. Sem culpa. Tendo o chão aos seus pés e o futuro à sua frente. E se sentiu como qualquer ser ser humano. Sem personagem. Somente... Alice.